Antonín Dvořák, a Luva sem um Dedo

Esses contos são perfeitos. Demonstram a extrema erudição de JH Henriques quando se trata de criar a ficção ao seu absurdo mai9s extremo. Diante de um perfil cosmopolita, como acontece nesse autor, a referência que dele se faz é de ser, em dias de hoje, um dos representantes mais imponentes de toda a literatura brasileira. Um fragmento do texto: Viena, 20 de dezembro de 1999. O ano se fechava com uma sinfonia de beca larga, New World Symphony, o mundo se revirava dentro daquele casulo egoísta que costuma reger a vida dos aficionados em sinfonias. Eu estava lá, enfiado num terno muito bem qualificado de termos escuros e uma gravata verde com bolas azuis, de seda e adquirida a bom preço num magazine de escolhas óbvias, como se fato sempre me sobrou a tese simples do aprimoramento. Quem regia era Herbert Von Karajan e era preciso prestar muita atenção nele para saber que aquele tipo de regência é mais uma obstinação e depuração do espírito do que mesmo batuta e outras referências absortivas e normais do mundo orquestral. Dava para perceber durante a regência que ele perdia um líquido claro pelo nariz, que suava muito sobre uma palidez de textura de areia seca e as lágrimas que lhe escorriam eram uma parte componente desse estado crepuscular que somente a sinfonia pode permitir. Eu ficava deveras muito impressionado com o que via.
Era a primeira vez que eu estava diante de Karajan. Então, sobrava-me aquele estado de lástima que sempre cabe a instantes perdidos, não obstante a necessidade de ficar muito atento e não me debandar porque uma russa de sobrepeliz de urso estava ali ao meu lado e exalava um estranho cheiro de peixe ou de ostras, eu não sabia direito. Em algum momento, eu dirigia as brocas do nariz para o chão, a ver se aquele cheiro de peixe ou de ostras não vinha do tapete ou da sola de um sapato. Eu não sabia direito como equacionar aquele cheiro. Era um odor que saía completamente dos meus parâmetros, por exemplo, aquele que fica na sola dos sapatos quando se pisa em merda de cachorro nos calçadões de Copacabana. Acontece que aquela mulher era elegante e seu perfil me chamava a atenção.
Autuado em delito ou flagrante por aquele mundo de metais, cordas e percussão, a possibilidade de sair faíscas do tipo dente de leão do bombo, eu podia muito bem sair da linha normal das coisas. Porque, a dizer a verdade, como eu nunca tinha visto ainda um homem com os olhos amarelos, eu tinha a certeza de que da posição em que me encontrava, a bissetriz dos olhos do maestro Karajan era completamente amarelada e revigorada por um reflexo que eu podia chamar de meio pastoso. É que a música tem esse preceito de meteoro moderno, tem a capacidade de mudar a criatura em causa de lugar ou mesmo fazer com que ela tenha crises convulsivas, mesmo sendo perfeita e bela como era o caso daquela sinfonia que me caía como uma luva, um tempo em que as minhas exigências eram muito mais do que simplesmente um atrito tropical entre duas matérias que promovem som. Quase tudo que promove som precisa de duas ou mais matérias. Uma terceira nem precisa ser discutida. Assim é que a física elementar bane outras conversas. Eu gostava demais desses preceitos elementares que regem as astúcias da física. Isso me ajudava a contemporizar as minhas pequenas atitudes de homem que abre demais a percepção e os sacolejos. Qualquer coisa que fosse quântico me levava a crer em matéria e espírito.