Bico-de-pimenta em Galhada de Vento

Cumpre esclarecer que o bico-de-pimenta – (Saltatricula atricollis), conhecido também como batuqueiro, é um pássaro que ocorria com frequência no Alto Paranaíba, Minas Gerais. Ainda existe, mas muito mais raramente encontrado devido ao despovoamento dos cerrados em função da lavoura monótona da soja e outros grãos. Pássaro arredio, jamais se aproxima das casas de moradia, prefere sempre os ermos do cerrado onde deve estar adaptado – e muito bem adaptado – há milhares de anos. Sua coloração é muito despreparada para comparação com s pássaros vermelhos, verdes e amarelos que costumam ocorrer na mesma região. Entretanto, é emblemático esse passarinho e somente quem o conhece sabe da peripécia memorial que é capaz de imprimir ao conhecedor.
Esse livro, O bico-de-pimenta em galhada de vento, foi construído a partir das lembranças do autor em torno desse mundo, desse pássaro, dessa microrregião que gira e gere boa parte de sua vasta obra poética e em prosa. O livro é dividido em blocos de dez poemas, perfazendo a totalidade do texto e chegando aos limites da exaustão, isso quando decanta com todas s palavras e sínteses possíveis esse passarinho e sua inserção no mundo da Poesia. Trata-se de um livro emblemático. Trata-se de um épico de toda a Poesia universal. Da mesma forma que o autor trabalha aqui com esse passarinho de forma metódica, poderia substituí-lo por um rouxinol ou uma cotovia de países distantes, ainda assim o resultado teria o mesmo impacto porque esse compêndio tem determinação universal e o bico-de-pimenta não passa de um ator que figura entre as galhadas do universo divino.
Esse é assunto carro-chefe do livro. Apesar desse detalhe, Henriques trabalha com as elegias já presentes em outros livros, as tais que mencionam de Góngora e Lope de Veja até Tzara e Charles Chaplin. Com isso, intercala poemas de um tempo anterior com esse, novos em folha, que retratam o bico-de-pimenta com herói de um mundo imaginário maravilhoso, porquanto seja real em demasia porque trata do cerrado brasileiro e nada mais que isso. J Humberto Henriques nasceu e foi criado no Alto Paranaíba; depois, transferiu-se para o Triângulo Mineiro e até mesmo para São Paulo para cumprir seus estudos. Entretanto, a região do Alto Paranaíba nele é patente e figura como determinante de toda a sua Literatura – veja-se por exemplo, somente a título de passagem, O Pindura-Saia e as Monções de um Tempo Branco (poesia) e A Serpente e o Gavião (romance), o Bilboquê (contos), todos livros que exibem como pano de fundo essa região rica e progressista.
Nos tempos em que caçava na região – campos e várzeas de capim meloso – daqueles dias, quando ainda era permitida a caça, J Humberto Henriques atravessou esses pedaços de mundo atrás de seu cão Tarzan, a perseguir as codornizes e perdizes que eram atração naquele mundo entre o cerrado, o campo e o chapadão. Com isso, o seu contato com esse mundo é muito próximo, podendo mesmo ser chamado de íntimo. Aí, sem tirar e nem por mais ideias, devia estar aninhado o habitat do bico-de-pimenta. Porém, uma vez indagado sobre essa eventualidade, J Humberto Henriques refere-se ao pássaro como raro nesse bioma e muito mais comum em colônias organizadas, como é o caso dessa descida para as Barreiras ou em terras de Joaquim Henriques, nobilíssimo tio do escritor. As coisas como na realidade são.
Assim posto, esse compêndio é notório em todos os seus aspectos. Intrinsecamente falando, quando se trata de perceber a Poesia nele inserida de maneira espontânea – já que é um representante desse estilo -, sua apresentação é sintética, organizada para que a palavra ocupe o espaço devido dentro da concentração textual. É um livro representativo, um dos mais belos que J Humberto escreveu em sua carreira fenomenal e produtiva.
Quando se imiscui nessa relação de intimidade com o cerrado, traduz toda a genealogia de sua imensa obra e faz com que o leitor tenha um conhecimento mais fundo desse universo.