Língua-línguas

Língua-línguas
Nenhum título poderia ser mais apropriado a esse livro do que esse que está aí posto. Os contos foram todos escritos durante a permanência de JH Henriques na Reserva Indígena Xacriabá, no Norte do estado de Minas Gerais, época da sua preparação do mestrado em Clínica Médica, pela Universidade de São Paulo. Os contos mostram como são alguns acontecimentos peculiares nessa terra de tradições e grande fascínio.
Fragmento do livro: Do Porquê Senhorinha tornou-se uma assassina inveterada, todavia mantida sobre toda a pompa de liberdade, é coisa que ela mesma segredo quando ambas trocávamos palavras íntimas, pois que entre nós mulheres é sempre possível uma compreensão. A dor que uma sente pode ser a dor que a outra já tenha sentido, ou ainda há de sentir. O maciço da questão, se se explicam certas coisas, se não se explicam. O fato é que ela nunca contou a mais ninguém sobre isto que cá fala-se. Sequer, e muito indignada ficava se alguém pensasse o contrário, sequer deixou que um homem algum tomasse-lhe nota do fio do segredo. Creio mesmo que quando segredou-me o íntimo lampejo, foi-lhe benfazejo o segredar, pois deixou senhorinha que lhe viessem os tumores da vida e os humores também. Espontânea foi que ela falou dos tudos. Não segurava os nadas, por estar, devia de estar, necessitando de alguém que muito lhe apoiasse o ombro das palavras, os males e os bens que nelas vêm mensagiados.
Senhorinha era bugrada de muitas gerações. Vivia muito bem, sim senhora, no lugar chamado o Virgínio, que fica exato situado nos nortes de Minas Gerais, lugar caatingoso, onde só chove quando os santos de mais patente estão de bom humor. Coisa que acontece oxalá-oxalá, uns dois pares de vezes ao ano. Tempos até, sai anos para mor de outro entrar e não se vê o sinal alegre das nuvens rebojando nos céus de amplidão clara. Sangue negro, sangue vermelho, sangue branco, tudo Senhorinha mesclava dentro de suas veias gênicas. Por tal, ela era naturalmente transmundada. E era também um tanto promíscua das nutrições, o que pode ser comum de se ver em lugar de águas poucas e pobres.