As Vísceras e os Ossos

As Vísceras e os Ossos
Esse é um dos livros de contos mais emblemáticos que foram escritos pelo surpreendente JH Henriques. Produzido no auge de sua criação em prosa, o livro traz poucos contos e o que nome ao livro conta a história de amor entre Lalena e um homem imponente de determinada cidade fictícia, o grande Pelópidas. Afluem aqui todos os conceitos e preconceitos que são próprios desse mundo passional. Um fragmento do texto:
Pelópidas Alfonseca Creé completava os setenta e três anos de vida, exercido de muitas alegrias e afinidades, ficava inteiro em face sua mesma e outra do mundo, os olhos de uma alegria contundente – quem o visse de longe diria que exuberava nos gestos, quem o visse de perto diria que exuberava no brilho dos olhos. Como alegria em homem assim sempre se rege pelo critério das preferências, as coisas diletas é que suprem os risos, não haveria de ser diferente com o homem e suas recargas de universo. Pelópidas tinha motivo para ser enveredado para o magnetismo do simples, a um só tempo tangente para as somas requeridas. Sempre-ser, as frases que usava naqueles dias tinham um travo de muita sustância, agia de conformidade com o caso e, ele mesmo, com tino de muita sabedoria, nem podia se dar ao juramento de que toda necessidade de suas felicidades estava sendo devidamente preenchida. Nome dela era a Lalena. Pronto! Ficava revelado em tudo e todo, o que a um homem sabe-se, o que a um homem sobe-se. Ademais, o que sobra é nada que se documenta em vácuo. Lalena. O nome em si, o teor do palato e das dentais em formato de som, a língua fazendo espiral curta e curva dentro da boca para saber pronunciar as vastidões do imaginado. Entre forma e imagem, qualquer coisa a mais que nem vaza toda em peneira de sentimento, Pelópidas preferia ficar com o sonho que crescia sobre um termo de realidade muito pertinente. E estava feliz com os resumos. Para ele, considerar tudo que já fizera e tudo que já ocorrera em sua vida era uma tarefa fácil. Com um contador a bordo poderia calcular os lucros. Os prejuízos, esses amargos da existência, esses ficavam por conta das tarefas que um dia teria desperdiçado. O que se fora.
Se virara outro depois de Lalena? Não, não virara outro, as heresias, verdade seja dita, nem nele fizeram o assento. Foi assim. Pelópidas virara outros. Muitos outros. Se tinha como medir as alegrias, nem usasse o comum para fazê-lo – como os balconistas que medem o tecido com o metro, como os carniceiros que medem o toucinho com a balança -, mas somente o estofado de um peito aclamado por orgulho e leveza. O peso de uma mulher põe demais o homem muito leve dentro do guarda-pó. Fica fino o fato. Assim sendo, o mundo aclama-se inteiro como única forma de serem os ares: marca suprema de um estalido que se complementa com a ostentação de luz. Lalena entrava em seus ouvidos com um quê de simples tubo, um oco por onde reverbera o som e pela outra ponta sai o brilho, consorte as necessidades de manter-se sempre como um rei de si mesmo, não podia desdizer as flamas que estavam a confundi-lo, por outra parte, a via avessa dos acontecimentos. Era homem razoável e negar a confusão metida ao seu bestunto seria a mesma coisa que negar a substância de um amor bombástico. Resolvera a natureza fazê-lo apaixonado depois de complementar as setenta de três primaveras e, de quebra, um princípio de verão. Quando a palavra amada reverberava em seu estado de ânimo, ria com a probabilidade de um rei com as naves retornadas. Lalena e muitas solenidades sutis. Todo o conjunto o armava de veludos. Tem coisa que acontece na vida de um homem com mais de setenta que não precisa ser explicada, assim como se faz com uma cartilha de menino que está aprendendo as letras primeiras.