A Mãe do Ouro

A Mãe do Ouro
Outro livro de contos. Extraordinário. Esses livros de contos de JH Henriques deveriam fazer parte de um acervo monumental. São muitos. E os contos são trabalhados de maneira filigranada. Há sempre um estilo próprio que o autor revela, aquele de sua própria lavra. Fragmento do livro: De profissão, Lafayette Rodrigues da Fleury era digitador. Sabia de todo processo por onde passa uma mensagem que o computador refrega. Era homem comedido de estar sob controle de todas as suas faculdades intelectivas, tudo alicerçado dentro dos comoventes esteios da moralidade e da boa educação. Sentava-se diante de sua máquina, já com ela tendo o seu parentescozinho e seus soluços de algum amor, pois que era dali que tirava o sustento para que a vida continuasse em moldes de dignidade. Era o trabalho dele. Além do mais tinha família para criar. Mulher e dois filhos. Nunca passara pela sua cabeça de digitador que um dia a sua vida fosse sofrer um mistério absurdo, alguma coisa que vinha com teores diferentes da labuta que até então levara. Se um seu cliente tinha compromisso com a matéria a ser digitada, de tudo ele fazia para que o tempo não supusesse um descompromisso entre ele e o solicitador. O que vale dizer que ele sempre - ou quase sempre entregava as encomendas em tempo breve e dentro do prazo que se previra. Fazendo de tal forma, que estando em dias com a labuta, os fregueses sempre lhe trariam serviço e prata.
A semana inteira lá estava ele, sentado diante de seu sistema, metendo os dedos às teclas e esperando que o resultado daquilo fosse passível de ser metido a um papel de impressora. Tudo trivial como costuma estar dentro da vida um trivial digitador. Era a semana cansativa para os olhos, cansativa para a bunda, cansativa para a dormência que ficava na ponta de seus dedos gorduchos, dedos de sujeito dito o pícnico. Embora não fizesse desse cansaço um motivo de desigualdade dentro de seus modos de pensar, era um operário como outro qualquer, apenas especializado na arte de elaborar textos já elaborados, o que confere dizer que era ele um copiador. E copiava com olhos trespassados de brancura. Simplesmente não lia aquilo que copiava. Punha ligeireza em seus dedos, que era para honrar o tempo do compromisso. Além do mais, quanto mais rendia em produtividade, mais tinha saldos em haver. Se digitava um texto romanceado, jamais se dava ao caso se aquilo era romance ou tragédia ou poesia, ou seja lá que diabos fosse. Ele ignorava o conteúdo. Era sua profissão. Era com brancos e leitosos olhos que ele trabalhava, sempre. Por alcunha de momento, por estar em ser assim, era como se olhasse somente a quarta dimensão de um emaranhado de letras, ícones e outros símbolos. Não se dava à percepção. Apenas elaborava o que pronto já estava. Bons modos de manter a integridade de todo o seu labor. Quando entregava um texto copiado, não sabia o que ele ditava.